18/09/2025 às 13h46 - Atualizado em 18/09/2025 às 17h52

Justiça social e ambiental: pesquisa da UnB analisa experiências de catadores no DF

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Com apoio da FAPDF, projeto investigou os impactos do fechamento do Lixão da Estrutural, a inclusão de trabalhadores em cooperativas e os desafios da reciclagem no Distrito Federal

Separação manual de materiais recicláveis na esteira de triagem — trabalho minucioso que garante maior aproveitamento dos resíduos. (Créditos: Arquivo pessoal/Sayonara Leali)

O encerramento do Lixão da Estrutural, em 2018, marcou uma das maiores mudanças socioambientais do Distrito Federal. Mais de três mil catadores que atuavam diariamente no espaço precisaram se adaptar ao novo modelo de gestão de resíduos sólidos, previsto pela Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) — instituída pela Lei nº 12.305/2010, que determinou o fechamento dos lixões em todo o país, a criação de aterros sanitários e a inclusão de catadores em programas de coleta seletiva. A medida buscava promover sustentabilidade e justiça ambiental, mas também trouxe desafios de ordem social, econômica e laboral para esses trabalhadores.

Professora Sayonara de Amorim Gonçalves Leal, coordenadora do projeto apoiado pela FAPDF sobre experiências de catadores de materiais recicláveis no DF. (Créditos: Plataforma Lattes/CNPq)

Foi nesse contexto que a professora Sayonara de Amorim Gonçalves Leal, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), coordenou o projeto “Experiências de catadores de materiais recicláveis confrontados a dispositivos de gestão de resíduos sólidos no DF: engajamentos ao cooperativismo e capacidade de inovação social”, apoiado pela FAPDF através do Edital Demanda Espontânea (2022).

Pesquisadora Produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Sayonara é doutora em Sociologia pela UnB, com pós-doutorado no Centro de Sociologia da Inovação da École des Mines de Paris. Professora adjunta da UnB, atua nas linhas de pesquisa Educação, Ciência, Tecnologia e Política, Valores e Sociedade, com foco nos impactos sociais das inovações tecnológicas e nas formas de participação pública em processos tecnocientíficos.

“Os catadores fazem parte da infraestrutura da gestão e tratamento de resíduos. Eles são agentes ambientais, produtores de saberes valiosos, mas ainda vivem em condições de precariedade social e laboral”, destaca.

Metodologia, resultados e relevância

Combinando cerca de 80 entrevistas, grupos focais, dinâmicas participativas e observação de campo em 22 cooperativas do DF, a pesquisa produziu um corpo de evidências qualitativas robustas que sustentam análises aprofundadas sobre a organização coletiva dos catadores e as adversidades da cadeia de reciclagem.

Catadores cooperados em atividade no galpão de triagem, onde resíduos são separados manualmente e destinados à reciclagem. 

Ancorada no pragmatismo, abordagem que valoriza a análise dos fenômenos no contexto em que eles acontecem, e na sociologia da crítica, perspectiva que leva a sério as análises e críticas formuladas pelos próprios sujeitos da pesquisa, a investigação garantiu validade e riqueza interpretativa para subsidiar recomendações de política pública.

Esse esforço revelou a complexidade do trabalho coletivo em cooperativas — modelo em que os catadores se unem para gerir em conjunto as atividades de triagem e comercialização dos resíduos. Embora fortaleça a autonomia, esse sistema ainda enfrenta barreiras estruturais, sobretudo pela baixa qualidade da coleta seletiva.

Vidros separados e armazenados em big bags.(Créditos: Arquivo pessoal/Sayonara Leali)

A pesquisa mostrou que, mesmo quando há separação domiciliar, grande parte dos resíduos chega às unidades de triagem em quantidade insuficiente ou em condições inadequadas para comercialização.

“As cooperativas sobrevivem a partir do material que conseguem vender. Mas, sem coleta seletiva eficiente, esse material chega em menor quantidade e muitas vezes inadequado para a comercialização”, alerta Sayonara.

A investigação é considerada inédita no Distrito Federal por sua profundidade. Foi a primeira vez que se deu voz diretamente aos catadores, documentando como vivem, como se organizam coletivamente e quais os principais desafios enfrentados. O estudo também dialoga com a economia circular da reciclagem — modelo que busca reduzir o desperdício e prolongar o uso dos recursos, reinserindo materiais no ciclo produtivo por meio do reuso e da reciclagem.

A pesquisa mostrou que, mesmo quando há separação domiciliar, grande parte dos resíduos chega às unidades de triagem em quantidade insuficiente ou em condições inadequadas para comercialização.

“As cooperativas sobrevivem a partir do material que conseguem vender. Mas, sem coleta seletiva eficiente, esse material chega em menor quantidade e muitas vezes inadequado para a comercialização”, alerta Sayonara.

A investigação é considerada inédita no Distrito Federal por sua profundidade. Foi a primeira vez que se deu voz diretamente aos catadores, documentando como vivem, como se organizam coletivamente e quais os principais desafios enfrentados. O estudo também dialoga com a economia circular da reciclagem — modelo que busca reduzir o desperdício e prolongar o uso dos recursos, reinserindo materiais no ciclo produtivo por meio do reuso e da reciclagem.

Catadores cooperados uniformizados, representantes da organização coletiva que sustenta o modelo cooperativo de reciclagem. (Créditos: Arquivo pessoal/Sayonara Leali)

O relatório final será encaminhado às cooperativas como forma de devolutiva social, reforçando o compromisso de que a ciência deve retornar à comunidade pesquisada. Para a professora, cabe ao cientista social evidenciar realidades inaceitáveis, mas a responsabilidade de transformá-las é do poder público.

“Mostramos elementos do trabalho dos catadores que são inaceitáveis. Se queremos uma inclusão socioprodutiva real, é preciso melhorar a coleta seletiva, a renda e as condições de trabalho. Isso concerne diretamente ao poder público”, enfatiza.

Parcerias, extensão e próximos passos

Além do trabalho de campo, a equipe se envolveu em iniciativas de extensão, oferecendo às cooperativas ferramentas para enfrentar os problemas identificados — muitos deles relacionados a questões de gestão, organização interna e sustentabilidade econômica. Essas ações também buscaram fortalecer o engajamento ao modelo cooperativo, incentivando a participação ativa dos catadores na tomada de decisões e na construção coletiva das soluções. Para Sayonara, essa articulação foi um dos grandes ganhos do projeto:

“À medida que coletávamos os dados, também oferecíamos instrumentos e soluções práticas. Essa junção mostrou-se justa, porque devolvemos contribuições àqueles que participaram da investigação”, afirma.


Fardos de materiais recicláveis organizados após o processo de triagem. (Créditos: Arquivo pessoal/Sayonara Leali)

O vínculo com a temática abriu ainda portas para a cooperação internacional: a coordenadora foi convidada a integrar um projeto na Bélgica voltado a catadores avulsos em situação de rua no DF.

Entre os próximos passos estão a organização de um livro, a publicação de artigos científicos, a continuidade de ações de extensão e a realização do VI Seminário Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), de 24 a 26 de setembro de 2025, no Instituto de Ciências Sociais da UnB, que debaterá os resultados da pesquisa.

O projeto contou com apoio fundamental da FAPDF, que viabilizou a execução e possibilitou a participação de estudantes bolsistas, e da Central de Cooperativas de Trabalho de Materiais Recicláveis do Distrito Federal (CENTCOOP-DF), que garantiu o acesso ao campo e legitimou a investigação junto às cooperativas.

 

Reportagem: Gabriela Pereira