15/09/2025 às 15h33 - Atualizado em 16/09/2025 às 17h44

Entre conquistas e novos desafios, pesquisadora da UnB mantém trajetória de mais de meio século na ciência

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Maria Sueli Felipe, professora emérita da UnB, construiu carreira marcada por descobertas pioneiras, atuação em órgãos estratégicos e dedicação à formação de gerações de cientistas


Maria Sueli, referência na bioquímica e na biotecnologia, segue contribuindo ativamente para a ciência brasileira. (Créditos: ASCOM/FAPDF)

A trajetória da professora Maria Sueli Soares Felipe é indissociável da história da ciência brasileira nas últimas cinco décadas. Reconhecida como professora emérita da Universidade de Brasília (UnB), onde lecionou de 1980 a 2010, Sueli segue ativa como docente da Universidade Católica de Brasília, no Programa de Ciências Genômicas e Biotecnologia. Também atua em posições estratégicas como coordenadora adjunta da área de Biotecnologia da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), responsável por avaliar os 60 programas da área em todo o país, e como membro da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), órgão vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que regula a biossegurança de atividades relacionadas a organismos geneticamente modificados (OGMs).

O início: a química da vida em uma universidade ainda em formação

Natural do interior de São Paulo, Maria Sueli teve a ciência despertada ainda no ensino médio, inspirada por um professor de Química que a marcou pela excelência e entusiasmo. Em 1972, aos 17 anos, chegou a Brasília para cursar Química na UnB. A capital ainda estava em consolidação, a universidade tinha apenas 12 anos, cerca de três mil alunos e poucas centenas de mulheres.

Registro de Maria Sueli em 1972, quando ingressou no curso de Química da UnB — início de uma trajetória dedicada à ciência brasileira.  (Créditos: Arquivo pessoal/Maria Sueli)

Foi na graduação que descobriu sua vocação: encantou-se com a bioquímica, “a química da vida”. O fascínio pela área a levou a estágios em laboratório e, mais tarde, ao mestrado em Biologia Molecular, criado em 1973 e um dos primeiros programas de pós-graduação no Brasil.

Começou a lecionar em 1978, aos 24 anos, e em 1980 foi contratada como professora da UnB. Diante da ausência de programas de doutorado no Distrito Federal, conciliava o magistério com longas viagens noturnas de ônibus até Ribeirão Preto, onde concluiu o doutorado em 1991 na Universidade de São Paulo (USP). Parte de sua pesquisa foi realizada na Universidade de Manchester, na Inglaterra, em um dos primeiros doutorados-sanduíche do país.

“Foi um tempo de amadurecimento e crescimento. Trabalhar muito e enfrentar dificuldades sempre foi a forma de avançar”, relembra.

Maria Sueli em atividades de pesquisa no laboratório da University of Manchester Institute of Science and Technology (UMIST), Inglaterra, entre 1988 e 1990. (Créditos: Arquivo pessoal/Maria Sueli)

A construção da ciência e da pós-graduação no Brasil

Maria Sueli viveu intensamente o processo de consolidação da ciência brasileira. Quando iniciou sua carreira, na década de 1970, a infraestrutura era escassa: poucos laboratórios equipados, ausência de cursos de doutorado no Distrito Federal e quase nenhum recurso estadual voltado à pesquisa. “Naquela época, não tínhamos condições mínimas para avançar. O que existia era fruto do esforço direto das universidades e dos próprios pesquisadores”, recorda.

Maria Sueli no antigo laboratório de Bioquímica na UnB, durante a década de 1970, período marcado pela escassez de infraestrutura científica no Distrito Federal.  (Créditos: Arquivo pessoal/Maria Sueli)

Somente nos anos 1990, com a criação da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), o cenário começou a mudar. “Antes da FAPDF, não tínhamos absolutamente nenhum recurso em nível distrital. A fundação foi um divisor de águas para a ciência em Brasília”, afirma. O fomento estruturado permitiu consolidar grupos, equipar laboratórios e abrir espaço para projetos locais de maior impacto.

Esse movimento se somou ao fortalecimento do sistema nacional de pós-graduação, conduzido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Hoje, são mais de 4.500 programas ativos no Brasil, distribuídos em todas as áreas do conhecimento, sendo 60 apenas em Biotecnologia, área sob sua coordenação adjunta.

Maria Sueli relembra que, quando começou, o país praticamente não tinha tradição nesse campo. “Eu vivi essa construção. Em 50 anos, passamos de um cenário quase inexistente para um sistema robusto e reconhecido internacionalmente”, destaca. Para ela, esse crescimento é motivo de orgulho, mas também exige atenção à continuidade dos investimentos. “É melhor ter um recurso menor, mas contínuo, do que viver de oscilações. A ciência precisa de previsibilidade para florescer.”

Mulher na ciência: trabalho dobrado e perseverança

Nos anos 1970 e 1980, a presença feminina na ciência era minoritária. Em turmas inteiras de graduação e pós-graduação, as mulheres eram poucas, muitas vezes restritas a papéis de apoio e raramente em posições de liderança. Para Maria Sueli, esse cenário significou enfrentar barreiras constantes. “Para chegar onde cheguei, tive que trabalhar o dobro ou o triplo. Sempre mantive postura respeitosa, mas firme para exigir respeito”, relembra.

Estudantes no Restaurante Universitário da UnB no final da década de 1970. Naquele período, as mulheres ainda eram minoria nos cursos superiores, realidade vivida por Maria Sueli Felipe em sua formação. (Acervo CEDOC/UnB)

O reconhecimento não veio sem resistência. Ao longo da trajetória, enfrentou momentos de hostilidade e até de falta de reconhecimento, mas escolheu não se deixar paralisar. “Nunca me preocupei com o que poderia me desanimar. Sempre deletei as dificuldades para seguir em frente. É assim que se cresce”, resume, em uma filosofia que marcou sua carreira e que hoje inspira jovens pesquisadoras.

Com o passar das décadas, o cenário mudou: hoje, muitas salas de aula e programas de pós-graduação já contam com presença majoritária de mulheres. Ainda assim, Maria Sueli destaca que o desafio atual está nos cargos de decisão. A participação feminina em conselhos, comissões, chefias de laboratórios e postos estratégicos segue desproporcional, o que exige políticas de incentivo e mudança cultural.

Ao olhar para trás, reconhece que sua trajetória ajudou a abrir caminhos. Ao olhar para frente, celebra a força das novas gerações de pesquisadoras. “As mulheres estão arrebentando na ciência. O importante é garantir que tenham espaço não só para produzir conhecimento, mas também para liderar e decidir”, afirma.

Pesquisa com impacto social

Por quase três décadas, Maria Sueli dedicou-se ao estudo de fungos patogênicos humanos e à resistência antimicrobiana — um dos maiores desafios de saúde pública do século XXI. Entre os avanços de sua equipe está a descoberta de uma nova espécie do gênero Paracoccidioides, responsável por causar a paracoccidioidomicose, micose pulmonar sistêmica endêmica da América Latina.

Maria Sueli com sua equipe de estudantes durante o Projeto Genoma Paracoccidioides brasiliensis — hoje P. lutzii. Décadas de 2000 a 2020 marcaram avanços decisivos para a pesquisa.

Durante quase um século, acreditava-se que a doença fosse provocada apenas pelo Paracoccidioides brasiliensis, descrito em 1908 por Adolfo Lutz. Em 2008, a equipe da professora Sueli identificou o Paracoccidioides lutzii, ampliando o conhecimento sobre a diversidade do fungo e revelando diferenças cruciais para diagnóstico e tratamento.

Essa contribuição foi decisiva porque, historicamente, os principais centros de pesquisa sobre fungos estavam nos Estados Unidos e na Europa, sem atenção para a realidade latino-americana. A descoberta colocou o Brasil no mapa mundial dessa área de estudo e foi reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que passou a classificar esses fungos como patógenos negligenciados.

Imagem de microscopia eletrônica do Paracoccidioides lutzii, espécie descoberta pela equipe da professora Maria Sueli Felipe. O fungo é responsável por micoses pulmonares graves e hoje é reconhecido pela OMS como patógeno negligenciado. (Crédito: Imagem de microscopia eletrônica – Acervo científico em domínio público)

As doenças associadas ao Paracoccidioides atingem principalmente populações rurais e trabalhadores expostos ao solo, muitas vezes sem diagnóstico rápido e com altas taxas de mortalidade. O avanço da pesquisa reforçou a importância de incluir essas micoses entre as doenças de notificação compulsória, permitindo mapear sua incidência, orientar políticas públicas e garantir tratamento adequado.

“A pesquisa básica pode parecer distante da aplicação imediata, mas sempre retorna em benefício da sociedade”, explica Maria Sueli. Para ela, esse é um exemplo claro de como o conhecimento científico gerado em laboratório pode se traduzir em impacto direto para a saúde coletiva e para a formulação de políticas nacionais.

Ciência sem fronteiras

Com parcerias nacionais e internacionais — incluindo o Broad Institute, USP, UFMG, Unifesp, além de grupos na França, Venezuela e Colômbia —, Maria Sueli é enfática: “Ciência é conhecimento, e conhecimento não tem fronteiras. O essencial é transformar esse conhecimento em tecnologia, em algo que melhore as condições da sociedade.”

Para ela, a principal diferença entre fazer ciência no Brasil e no exterior não é a competência, mas a velocidade. “Aqui, um reagente pode demorar meses para chegar por causa da burocracia. Na Inglaterra, eu pedia de manhã e recebia à tarde. Essa lentidão ainda atrasa o desenvolvimento científico nacional.”

Ainda assim, sua visão é otimista: “Nada cai do céu. É preciso construir dia a dia, com trabalho. Crescemos muito, e ainda temos muito a avançar.”

 

Reportagem: Gabriela Pereira