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Cerrado em foco: pesquisa analisa efeitos do combate químico a incêndios florestais
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Projeto apoiado pela FAPDF avalia como produtos químicos retardantes podem ajudar brigadistas e quais impactos trazem ao ambiente
Brigadista em ação durante ensaio de combate direto ao fogo, realizado em área de Cerrado no âmbito do Projeto Prometeu. (Créditos: Arquivo pessoal/Projeto Prometeu – Prof. Carlos Henke de Oliveira)
Em um cenário de queimadas cada vez mais longas e severas, o Projeto Prometeu DF reúne ciência, tecnologia e operação em campo para responder a uma pergunta central: quando (e como) o uso de retardantes químicos faz sentido no combate a incêndios florestais — e quais impactos essa escolha traz ao ambiente. A iniciativa é coordenada pelo professor Carlos Henke de Oliveira, do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB), com apoio da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), através do edital Demanda Espontânea (2021).
Retardantes químicos de chamas são produtos adicionados à água para aumentar sua eficiência no combate ao fogo. Eles reduzem a propagação ou a intensidade das chamas, funcionando como aliados de brigadistas e bombeiros — mas também trazem potenciais impactos ambientais que precisam ser monitorados.
Professor Carlos Henke de Oliveira, coordenador do Projeto Prometeu DF, do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB). (Créditos: Reprodução/UnB Ciência)
Henke é biólogo formado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde concluiu mestrado e doutorado em Ecologia. Sua trajetória interdisciplinar combina ecologia de paisagens, meteorologia aplicada e desenvolvimento tecnológico, incluindo experiências com fotografia aérea, eletrônica e até formação como piloto de avião. Esse mosaico de saberes, amadurecido desde os anos 1990, orienta hoje uma visão prática: incêndios são fenômenos complexos que exigem leitura integrada da paisagem, do clima, da tecnologia e da operação.
O nome Prometeu foi inspirado no titã da mitologia grega que roubou o fogo dos deuses para entregá-lo à humanidade. No projeto, o fogo simboliza o conhecimento aplicado: a pesquisa que nasce na universidade e se transforma em ferramenta prática para quem enfrenta os incêndios diariamente. “Não é só a universidade que ensina; ela também aprende com a experiência de brigadistas, bombeiros e instituições ambientais”, explica Henke.
O projeto conta ainda com a colaboração do Corpo de Bombeiros Militar do DF (CBMDF), do Ibama/Prevfogo, do ICMBio, da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), integrando pesquisa e prática de campo.
Tecnologias e experimentos: sistemas embarcados, mesa Osíris e frentes de combate
O Prometeu desenvolveu sistemas embarcados — dispositivos eletrônicos compactos que funcionam como “mini-laboratórios portáteis”, acoplados a drones, aeronaves ou equipamentos de brigadistas. Eles registram dados a cada dois segundos, como temperatura, poluentes, imagens termais e condições de operação, revelando detalhes invisíveis ao olho humano.
Sistemas embarcados do Projeto Prometeu: A) estação meteorológica fixa; B) Sonda Saphira 3v6 (móvel); C) Sonda Oba v1, acoplada à bomba costal; D) Sonda Prometeu v1, integrada a um drone.(Créditos: Arquivo pessoal/Projeto Prometeu – Prof. Carlos Henke de Oliveira)
As principais famílias são:
Prometeu — acoplada a drones, mede temperaturas da atmosfera e do solo, sobrevoando as chamas em coordenação com aeronaves de combate.
Saphira — seis dispositivos distintos, para aeronaves ou uso por pesquisadores em solo, coletando gases, parâmetros meteorológicos e imagens infravermelhas.
Obá — acoplada a bombas costais, registra condições atmosféricas e mapeia com precisão o lançamento de água ou retardantes durante o combate.
Embarcado Osíris 1.07: visão geral panorâmica e aérea do sistema em operação, utilizado para monitorar os efeitos de queimadas experimentais. (Créditos: Arquivo pessoal/Projeto Prometeu – Prof. Carlos Henke de Oliveira)
Outro destaque é a mesa de combustão Osíris, uma câmara de grandes dimensões que simula queimadas lado a lado: um setor com combustível puro e outro tratado com retardantes. Com câmeras termais e sensores de peso, permite rodar várias queimas por dia, descartando rapidamente produtos ineficazes e economizando tempo, recursos e riscos em campo.
Os experimentos se distribuem em três frentes:
Combate indireto — aplica retardante com 24h de antecedência, isolando o efeito químico.
Combate direto terrestre — compara, em linhas de fogo idênticas, retardante e água, registradas por drones.
Combate aéreo — testes com aeronaves do CBMDF, como o modelo AT802F, equipadas com telemetria e câmeras para medir precisão, distribuição e efeito sobre as chamas.
Efetividade, segurança ambiental e diretrizes
A efetividade dos retardantes é sempre avaliada por comparação. No combate direto, por exemplo, a água já é um excelente retardante físico, exigindo desenhos experimentais rigorosos para medir se o produto químico realmente traz ganhos.
Quanto à segurança ambiental, a constatação é clara: produtos mais eficazes tendem a ser mais impactantes, pois exigem maior carga química. Entre os efeitos comuns estão a morte de herbáceas e arbustivas e mudanças na dinâmica da vegetação, às vezes favorecendo espécies exóticas. “O impacto ambiental do retardante é inevitável. Ele pode ficar restrito a uma escala local, mas sua magnitude é alta e precisa ser considerada”, ressalta Henke.
Impacto ambiental: efeitos da fitotoxicidade do boro, que provocou a mortalidade do estrato rasteiro e arbustivo do Cerrado (ex.: Canela-de-ema – Vellozia squamata). (Créditos: Arquivo pessoal/Projeto Prometeu – Prof. Carlos Henke de Oliveira).
Como diretriz, o Prometeu recomenda evitar o uso em áreas sensíveis ou com recursos ecológicos raros — e, se inevitável, exigir monitoramento e mitigação. Em áreas de matriz produtiva (agricultura, silvicultura, pastagens exóticas, bordas ruderais), o uso pode ser considerado com critérios claros e registro. Já próximo a corpos d’água, os lançamentos devem ser proibidos, com rastreabilidade para prevenir falhas.
Impacto científico, protocolos e comunicação
Para transformar a experiência prática em aprendizado, o Prometeu desenvolveu um protocolo de registro do uso de retardantes, reunindo dados sobre segurança, desempenho das equipes, aeronaves e efetividade. A ideia é acumular evidências e permitir que agências como o Ibama avaliem avanços ou falhas em operações passadas. “A ausência de registros compromete o aprendizado coletivo”, reforça Henke.
O Distrito Federal desponta como um “laboratório vivo” nesse esforço. A região dispõe do avião AT802F, capaz de lançamentos localizados e precisos — mas, sozinho, ele não resolve. “Se a frente de fogo sofre redução, mas não é combatida por equipes terrestres, o problema volta, às vezes pior”, alerta Henke. Por isso, a integração entre brigadas e operação aérea é essencial.
Visão aérea de experimento do Projeto Prometeu, evidenciando a diferença no combate às chamas: à esquerda, uso de retardantes; à direita, aplicação apenas de água. (Créditos: Arquivo pessoal/Projeto Prometeu – Prof. Carlos Henke de Oliveira)
O diferencial do Prometeu é analisar eficiência e impacto ambiental simultaneamente, superando posições extremas. “Se não fizermos isso, caímos num cabo de guerra entre quem considera o retardante a solução definitiva e quem o rejeita de forma absoluta. Nenhuma dessas visões condiz com a realidade dos combatentes, com o orçamento público ou com a base científica disponível”, afirma Henke.
As decisões também devem variar conforme o bioma: no Cerrado, o uso pode ser autorizado sob regras claras; em várzeas, veredas e no Pantanal, deve ser proibido; e, na Amazônia, ainda exige respostas a questões preliminares. “O fogo pode até ser extinto, mas o problema não acaba ali: pode se tornar ecológico, social, político e econômico ao mesmo tempo”, completa.
Além dos artigos científicos, o projeto investe em documentários para ampliar o alcance social. O filme "Incêndios, poluição e Ciência Cidadã no Distrito Federal", sobre a qualidade do ar no DF, teve grande engajamento e inspirou cidadãos e instituições a criarem novas estações de monitoramento.
Desafios, inovação e próximos passos
Entre 2020 e 2022, a pandemia e a suspensão de licenças de queima atrasaram ensaios de campo. Em 2018, a primeira licença científica levou sete meses para ser emitida — demora que, por ser inédita, abriu caminho para fluxos mais ágeis nos anos seguintes.
Etapas do Projeto Prometeu em campo: desde a instalação da estação meteorológica e o briefing pré-combate até a preparação das soluções químicas e o carregamento das bombas costais, que antecedem a aplicação dos retardantes no fogo. (Créditos: Arquivo pessoal/Projeto Prometeu – Prof. Carlos Henke de Oliveira)
Essas experiências reforçaram o caráter inovador do Prometeu, que se diferencia por estudar o combate, e não apenas o fogo, utilizando instrumentação de alta frequência e avaliando, em conjunto, eficiência e impacto ambiental.
O projeto optou por não patentear os sistemas embarcados, priorizando a divulgação aberta de métodos e achados. O objetivo é consolidar uma base metodológica robusta que sustente a futura regulamentação nacional sobre o uso de retardantes em incêndios florestais, diante das tecnologias atuais e das que ainda possam surgir.
Rede de parceiros e papel da FAPDF
A UnB lidera o Prometeu com participação de alunos e pesquisadores de Biologia, Ciências Ambientais e Engenharia Florestal, em colaboração com a UFMS, a UFPR, o Prevfogo/Ibama e o ICMBio. Brigadistas atuaram em campo e no pátio, como no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em 2020.
A FAPDF tem sido decisiva desde 2016, quando apoiou a fase inicial do projeto, e novamente em 2021, pelo edital Demanda Espontânea. Os recursos viabilizaram experimentos de campo e laboratório, a construção de dispositivos eletrônicos, análises químicas de solo e plantas e mapeamentos sistemáticos com drones — além do acompanhamento de queimadas controladas e incêndios reais.
Para o presidente da Fundação, Leonardo Reisman, a iniciativa exemplifica como a pesquisa aplicada transforma realidades: “O Projeto Prometeu mostra como o conhecimento científico pode embasar decisões estratégicas no combate a incêndios florestais. É um exemplo de ciência produzida no Distrito Federal dialogando diretamente com a sociedade e fortalecendo a preservação da nossa biodiversidade.”
Mais informações sobre o Projeto Prometeu DF estão disponíveis no site: Projeto Prometeu.
Reportagem: Gabriela Pereira.